Hoje (29/5) deparei-me com um conjunto de artigos de uma
amiga no facebook (cf. também o blogue Divas
e Contrabaixos), indignada com este alegado “facto”: «Durante oito anos,
500 crianças da Casa Pia foram submetidas, sem saberem, a experiências que
“nunca tinham sido feitas sequer em animais”». Noutras notícias, lia-se que as
mesmas crianças foram «cobaias de uma universidade dos EUA». Bom, se crianças à
guarda duma instituição tutelada pelo Estado Português são cobaias de uma
universidade americana para serem submetidas a experiências que nem nos animais
foram feitas – isto é preocupante!
Tendo à minha disposição uma imensa quantidade de artigos
científicos produzidos nos últimos anos, fiz uma pausa no meu trabalho para
procurar publicações sobre esta experiência. Em poucos segundos encontrei
algumas e pareceu-me que, para não variar, os jornalistas que suscitaram este
alarme social demonstraram alguma dificuldade em compreender as publicações científicas…
Deixo aqui algumas evidências[1]
que me deixam mais tranquilo quanto ao eventual abuso das crianças casapianas –
desta vez, científico!
1.
Foram envolvidos médicos investigadores da
Universidade de Lisboa, a qual participou institucionalmente no estudo.
2.
O desenho da experiência consiste na comparação
de dois grupos, sujeitos a tratamentos diferentes. No entanto, ambos os
tratamentos eram usados regularmente à época (e são-no ainda hoje), pelo que nenhum desses tratamentos pode ser
considerado experimental. Ou seja, as crianças foram separadas em dois
grupos que receberam conjuntos de materiais diferentes para reparar dentes
cariados, mas nenhum deles era desconhecido da prática dentária regular. Não
houve nenhum ensaio clínico de substâncias novas de efeitos desconhecidos.
3.
A escolha da Casa Pia foi justificada por estes
factores:
a.
Era conhecida a necessidade de tratamento
dentário urgente numa elevada proporção de alunos da Casa Pia. A média de
cáries nas crianças de 8-10 anos era cerca de sete vezes superior à média
americana.
b.
Foi medido o teor de mercúrio na urina e
verificou-se que os alunos apresentavam valores bastante baixos. Isto
facilitaria as medidas posteriores ao tratamento, já que um dos tratamentos (“chumbo”)
contém mercúrio e os efeitos da exposição ao mercúrio nesse tipo de tratamentos
eram precisamente o objecto do estudo.
c.
Considerou-se que a ligação dos alunos à
instituição era muito favorável para garantir a continuidade de estudos de
acompanhamento longitudinais que eram necessários para avaliar os efeitos (durante
sete anos).
4.
O estudo foi autorizado pelo organismo
governamental americano que regula a prática dentária e pelo equivalente americano
da Comissão de Protecção de Dados [não foi publicada informação sobre
autorizações de organismos reguladores portugueses]. Foi obtido o consentimento
dos pais e dos alunos. O director da Casa Pia deu o consentimento para os
alunos internos (20% do total da amostra).
a.
Os autores identificaram esta autorização do
director para os 20% de alunos internos como a principal questão ética do
estudo: o director poderia ver no estudo uma forma fácil e barata de garantir
tratamento dentário a esses alunos. De qualquer modo, argumentaram que o
interesse dele não seria superior ao dos pais dos restantes 80%, já que o
acesso a tratamento dentário era diminuto para todos. Argumentam ainda que a
gratuitidade do tratamento não pode ser encarada como uma forma de “forçar” o
consentimento dos pais, uma vez que, se o tratamento não fosse grátis, eles não
iriam procurá-lo.
b.
Foi a equipa da Universidade de Lisboa que determinou
que o consentimento do director era suficiente para a participação dos alunos
internos.
[1] DeRouen et al (2002) Issues
in design and analysis of a randomized clinical trial to assess the safety of
dental amalgam restorations in children. Controlled Clinical Trials, 23(3),
301-320.